Nossa Senhora Aparecida: 300 anos de um fenômeno de devoção, política e fé na história brasileira

Os cristãos católicos e a sociedade brasileira celebram este ano, um dos maiores fenômenos religiosos da história do Brasil: os 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora Imaculada Conceição no Rio Paraíba do Sul.
Se o Brasil tem 517 anos, contando a partir da chegada do branco europeu ao nosso continente, no início do século XVI, três séculos desse calendário têm as marcas peculiares da presença mariana na fé, na devoção e na vida social do povo brasileiro.
Antes do recolhimento, no ano de 1717 por três pescadores, da imagem de Nossa Senhora da Conceição, já era forte a devoção mariana na colônia brasileira. Segundo o sociólogo Gilberto Freyre, o catolicismo é o cimento da formação da nação brasileira e nessa massa de fé, se faz presente Maria, pois na nau de Pedro Álvares Cabral havia uma imagem de Nossa Senhora da Boa Esperança, conforme cita Damião Peres no livro História da Colonização Portuguesa no Brasil, de 1924.
O que revela que Maria de Nazaré, através da fé do branco católico, embarcou também para as terras do além-mar.
De acordo com o historiador Gilberto Paiva na obra Aparecida 300 anos (2017), a qual usamos como fonte neste artigo, em 1646 o rei D. João IV proclamou Nossa Senhora da Conceição padroeira de Portugal e de suas possessões ultramarinas. Sendo assim, a partir desta data, a devoção a Nossa Senhora da Conceição, foi difundida nas colônias portuguesas.
No Brasil, com as missões franciscanas nos primeiros séculos de nossa história, criaram-se paróquias, denominaram vilas, povoados, rios, ruas, praças, pinturas e imagens, invocando o título de Nossa Senhora da Conceição.
Porém, antes mesmo da proclamação do rei, na recém-criada Capitania de São Vicente, em 1561, foi criada a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém.
Reforçando uma tradição multissecular, D. João V em 1717, recomendou os bispos e vigários à festa da Imaculada Conceição em oito de Dezembro, a qual continua no calendário litúrgico católico até nossos dias.
Queremos apontar com esses dados históricos que, quando os pescadores encontraram a imagem de Maria no Rio Paraíba do Sul, a sua devoção como Imaculada Conceição já era fervorosa na colônia brasileira. Talvez, se pensarmos no âmbito da fé, naquela ocasião era Maria que desejava se encontrar com o povo brasileiro, e se tornar pela fé Mãe desta Pátria.
Sabemos por meio da historiografia, que D. Pedro de Almeida, o Conde de Assumar, foi nomeado governador da Província de São Vicente (São Paulo e Minas Gerais) pela Coroa portuguesa, e no dia 04 de Setembro de 1717, tomou posse da Capitania. Segundo as pesquisas, o governador passou quinze dias na Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá, próximo do Rio Paraíba.
Entre os dias 17 e 21 de Outubro desse ano, três pescadores: João Alves, Domingos Garcia e Felipe Pedroso, foram designados pelas autoridades da vila para fazer uma pesca para banquetear o Conde de Assumar, uma vez que era sexta-feira e segundo a tradição católica da época, não se comia carne vermelha.
A pesca milagrosa iniciou no Porto de José Corrêa Leite, mas os pescadores não pescaram nada nesse lugar. Até que chegaram ao Porto de Itaguaçu e João Alves, lançando a sua rede de rasto, tirou o corpo da imagem, sem cabeça. Lançando mais abaixo outra vez a rede tirou a cabeça da mesma.
Dali por diante foi tão copiosa a pescaria, que os pescadores ficaram receosos de naufragarem pela quantidade de peixes que tinham nas canoas, conforme encontramos no livro tombo da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá.
No encontro da imagem com os pescadores e dos pescadores com a imagem, surgem algumas perguntas: como a imagem foi parar naquele rio? Sendo ela de barro, porque não afundou?
Como se explica que primeiro encontraram o corpo da imagem e numa segunda pesca, a cabeça?
Essas respostas, segundo os pesquisadores e estudiosos do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida, são mistérios de fé e devoção a Maria nas terras brasileiras.
Porém como vimos, já existia no Brasil a devoção a Nossa Senhora.
Desde a fundação da Capitania de São Vicente, com a presença franciscana, havia a propagação do culto e da devoção mariana. Nesse sentido, foram confeccionadas muitas imagens para vivência da devoção a Maria por parte dos cristãos.
Mas quem fazia tais imagens?
De acordo com o historiador Gilberto Paiva, os Beneditinos em São Paulo possuíam no século XVII, algumas olarias e nestas confeccionavam cerâmica e imagens de barro.
Para o pesquisador, as imagens eram feitas de barro paulista, cujo artista deste século era Frei Agostinho de Jesus, do Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro de Santana de Parnaíba.
Neste sentido para Paiva, a imagem encontrada no Rio Paraíba era de barro paulista, de arte erudita e feita provavelmente na primeira metade do século XVII. Pelo estudo comparativo da imagem de Nossa Senhora Aparecida com tantas outras imagens célebres deste século, em diversas Igrejas de São Paulo, os estudiosos chegaram à conclusão de terem a mesma procedência: Frei Agostinho de Jesus.
Quanto à sua cor escura ou castanha, afirmam que deve-se ao fato da permanência da imagem no lodo do Rio, da exposição à candeia de azeite e ao fumo do fogão na casa do pescador Felipe Pedroso, por onde permaneceu por aproximadamente 20 anos (Paiva, 2017).
Não sabemos como a imagem foi parar no Rio Paraíba do Sul, pela analogia comparando-a com outras imagens, a mesma foi confeccionada de barro terracota paulista, pelos beneditinos, provavelmente Frei Agostinho de Jesus.
Segundo o pesquisador Pedro de O. Neto, a imagem da Conceição Aparecida veio de longe, não foi confeccionada no vale do Paraíba, mas de outro local paulista, onde estivera no altar de alguma capela ou num oratório de próspera fazenda.
Quem a lançou na água, por estar quebrada, talvez com lágrimas nos olhos, nunca pensaria que naquele simples gesto de renúncia estava fazendo um bem à humanidade, cedendo ao povo brasileiro e do mundo um imenso patrimônio de devoção e fé (Neto, 1970).
Em 1740, segundo as pesquisas, já havia muitos devotos e milagres atribuídos a Nossa Senhora Aparecida.
Foi quando construíram a primeira capela de madeira na beira do Rio Paraíba. Em 1745 foi erigida uma segunda capela no Morro dos Coqueiros, que permaneceu por mais de cem anos e a partir de 1840, iniciou-se a construção da que hoje é a antiga basílica.
No início do século XIX, contexto em que vigorava a relação e a unidade política do regalismo e o padroado entre a Igreja e o Estado, segundo a historiografia pesquisada, a capela e os cofres contendo as doações feitas pelos romeiros, a partir de uma resolução tomada pela coroa portuguesa, passaram a pertencer à Fazenda Nacional.
Começam nesse período as relações e a presença política num fenômeno religioso de fé e devoção.
Conforme o historiador Paiva, com a criação de uma Mesa Administrativa em 1844, a capela e seus bens foram administrados pelo governo Estadual até 1890. Fatos que não diminuíram ou alteraram o aumento de romeiros e devotos a Nossa Senhora em todo país, que cresceu ano após ano.
Em 1822, o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire esteve em Aparecida e relatou que a imagem que ali se venerava vista como milagrosa, gozava de grande reputação, não só na região, como nas partes mais longínquas do Brasil.
Segundo o cientista naturalista, para este lugar, vinha gente de Minas, Goiás e Bahia para cumprir as promessas feitas a Nossa Senhora Aparecida (Saint-Hilaire, 1929).
Para o pesquisador Augusto Emílio Zaluar, muitos personagens políticos e viajantes estrangeiros visitaram a imagem de Nossa Senhora Aparecida no século XIX.
Destacamos dois deles: Dom Pedro I e a Princesa Isabel.
No dia 20 de Agosto de 1822, o príncipe Pedro entrou na capela e diante da imagem ajoelhou-se e pediu proteção à Santa para o Brasil.
No mês seguinte aconteceu o ato da Independência do país, que segundo os estudiosos, por muitos anos se comemorou no dia 08 de Setembro, o mesmo dia que se comemorava a festa de Nossa Senhora Imaculada Conceição.
A princesa Isabel esteve em Aparecida duas vezes. Voltando de uma viagem a Minas Gerais, no dia 08 de Setembro de 1868, conforme o historiador Paiva, ela participou do último dia da novena de Nossa Senhora Aparecida.
Como a princesa não tinha filhos e queria engravidar, fez promessa a Nossa Senhora e em 1884 voltou uma segunda vez, agora acompanhada dos filhos.
Foi nesta ocasião que a princesa doou uma coroa de ouro, que foi usada na coroação de 1904, quando Nossa Senhora Aparecida recebeu, com apoio do congresso Nacional, o título de Rainha do Brasil.
No século XX, muitos acontecimentos eclesiásticos e políticos aconteceram para o aumento da devoção a Nossa Senhora Aparecida no País.
A Igreja de Aparecida se tornou basílica e em 16 de Julho de 1930, o secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Eugênio Pacelli, assinou o documento do Papa Pio XI, em que Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi constituída como Padroeira do Brasil.
Em 1931, Dom Sebastião Leme, reuniu um milhão de fiéis no Rio de Janeiro, com a presença do governo provisório “populista” Getúlio Vargas, que rezou pela nação diante da imagem. O cardeal Leme, proclamou solenemente Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do Brasil e no final do mesmo ano, aproveitando a proximidade com o Estado, inaugurou a estátua do Cristo Redentor (Paiva, 2017).
Outro ato de fé e política envolvendo a devoção de Nossa Senhora Aparecida, foi na Construção da Capital Federal. Por acordo entre a Igreja e o Estado, por decisão do presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira, no dia 03 de Maio de 1957, foi rezada a primeira missa na futura capital, em que Nossa Senhora foi elevada a padroeira da Capital do Brasil (Paiva, 2017).
Com apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, bem como do Estado brasileiro e dos milhares de devotos a Nossa Senhora Aparecida, iniciou em 1955 a construção da Nova Basílica e Santuário da Padroeira do Brasil.
A Igreja que comporta até 70 mil fiéis, foi pensada para acolher os milhares de devotos que visitam Nossa Senhora e ali cumprem as suas promessas e devoções.
Além da unidade de fé, devoção e política em torno da imagem de Nossa Senhora, há a devoção manifestada por alguns Papas à Mãe Aparecida. Por ocasião da celebração dos 250 anos do encontro da imagem, o Papa Paulo VI ofereceu uma rosa de ouro a Nossa Senhora.
Em 1980, por ocasião da vinda do Papa João Paulo II ao Brasil, o Presidente João Batista Figueiredo decretou que o dia 12 de Outubro, o qual já era celebrado desde 1953, o dia de Nossa Senhora Aparecida, agora seria feriado nacional. No dia 04 de Julho de 1980, João Paulo II visitou e rezou no Santuário Nacional de Aparecida, que foi elevada e consagrada pelo Papa como Basílica Menor.
Por ocasião da V Conferência Episcopal Latino Americana, que foi realizado em Aparecida, Nossa Senhora recebeu a visita do Papa Bento XVI, o segundo Papa que a presenteou com uma Rosa de Ouro.
Esta Conferência foi presidida pelo Cardeal Jorge Mario Bergólio, que em 2013 foi escolhido para substituir Bento XVI. Nesse mesmo ano o Cardeal Bergólio, agora Papa Francisco, visitou e celebrou no Santuário de Nossa Senhora Aparecida.
Contudo, percebemos que nesses trezentos anos do encontro de Nossa Senhora Aparecida nas águas do Rio Paraíba do Sul pelos pescadores, Maria por meio da fé de milhares de fiéis e devotos, esteve presente na vida religiosa, social e política de grande parte dos brasileiros, e como diz uma estrofe do hino do XI Congresso Eucarístico realizado em Aparecida em 1985: “nesta curva do rio tão mansa, onde o pobre seu pão para o rico foi buscar, o Brasil encontrou a esperança: esta Mãe que por nós vem rezar”.
Que neste período de crise política e econômica, celebrando os 300 anos de Aparecida, peçamos a Mãe de Deus e nossa, que cubra de benção o Brasil e guarde todos os brasileiros dentro de seu manto de esperança, de paz e de salvação.


Pe. Aparecido Barbosa
Pároco da Paróquia Nossa Senhora de Fátima
Licenciado em História e Mestrando em Ciência da Religião pela Puc-Campinas